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Interpretação e Revisão dos Contratos e a Reforma do Código Civil

Interpretação e Revisão dos Contratos e a Reforma do Código Civil 


O Código Civil foi publicado em 2002 e sua vigência teve início em 2003, de modo que todos pudessem conhecer e fazer as adequações necessárias naquilo que fosse preciso, tanto no que dispõe em relação às pessoas quanto às empresas. 

No entanto, algumas disposições sofreram mudanças mais recentes, permitindo a fruição e salvaguarda de direitos previstos na Constituição Federal. 

Neste texto, vamos comentar um pouco sobre a interpretação e revisão dos contratos, tema que vem sendo expandido pelas discussões doutrinárias e jurisprudenciais desde a entrada em vigor do novo Código e tem sido renovado pela legislação recente, neste caso específico, pela Lei de Liberdade Econômica, e cuja redação será atualizada pelo Projeto de Reforma do Código Civil, o PL n.04 de 2025.



1. Sobre os parâmetros de intepretação contratual

É sabido que o princípio da boa-fé é considerado um dos princípios norteadores do Código Civil de 2002, podendo ser descrito como um dever geral de conduta proba e íntegra de todos, sejam particulares, sejam empresas. E a renovação legislativa num dos artigos que tratam da boa-fé no Código deve ser analisada com atenção.

O artigo 113 dispõe que a interpretação dos negócios jurídicos deve ser feita conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração do contrato e alguns parágrafos foram acrescidos ao dispositivo. Veja-se o texto da lei:


Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

§ 1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:  

I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;  

II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;  

III - corresponder à boa-fé;  

IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e ( 

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.  

§ 2º  As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.  


O parágrafo 1º dispõe que a interpretação deve atribuir o sentido do negócio jurídico que foi confirmado pelo comportamento das partes ao longo do cumprimento do contrato, bem como ao que corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativos ao negócio que foi celebrado. Também deve ser interpretado de modo que corresponde à boa-fé e, caso se verifique que as disposições contratuais foram redigidas por uma das partes, essas devem ser interpretadas de modo mais benéfico à parte que não as redigiu.

O contrato deve ser interpretado com  referência nas demais disposições do contrato e da racionalidade econômica das partes consideradas as informações disponíveis. Essa disposição é a mais genérica e conflita com a mínima interferência sobre o contrato disposta no artigo 421, ao menos aparentemente. E a ideia de racionalidade econômica é de aplicabilidade curiosa, a se atentar na jurisprudência que advirá a partir dessa disposição.

É muito difícil estabelecer da qual seria razoável negociação das partes porque geralmente as dúvidas sobre a interpretação da cláusula contratual surge em momentos de crise ou de dificuldade de uma das partes em conseguir honrar o compromisso assumido.  

Por fim, há também disposição relativa a adoção pelas partes de regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos que sejam diversas daquelas previstas em lei, lei esta no sentido mais genérico possível abrangendo o próprio Código Civil, a lei de introdução às normas do direito brasileiro, o que causa estranheza. Por um lado,  aqui se permite a adoção de regras de sistemas jurídicos estrangeiros ou cridas pelas próprias partes, e de outro, limita-se a interferência dos juízes sobre os contratos com essas reformas trazidas pela lei de liberdade Econômica. Ou seja, além dos juízes podem interferir menos no contrato na sua interpretação e revisão, ainda se prevê a adoção de maneiras variadas de interpretação contratual, o que pode trazer grandes problemas aos contratantes mais vulneráveis.

2. Sobre a Revisão Contratual

Por sua vez, o artigo 421, foi modificado pela lei de liberdade econômica e recebeu um complemento, a partir da inclusão do artigo 421-A, que dispõe especificamente sobre a revisão contratual. Observe-se:


Art. 421.  A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. 

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.  

Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:  

I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;  

II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e 

III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.  


Esse complemento dispõe que as partes em contratos civis e empresariais são presumidas iguais (ou seja, tem as mesmas condições de discernimento, de conhecimento dos negócios que estão celebrando) e, portanto, os contratos são paritários e simétricos, salvo se algum elemento dito aqui “concreto” não justifique essa presunção. O mesmo artigo dispõe que regime jurídicos previstos em leis especiais podem afastar essa presunção, como no caso do direito do consumidor, direito do trabalho, direito administrativo, entre outros.

Há determinadas garantias a partir da fixação de parâmetros para interpretação das cláusulas contratuais, bem como pressupostos para revisão ou para resolução do contrato.

Também deve ser observada a alocação de riscos definida pelas partes naquilo que as partes aceitaram ao celebrar o negócio e satisfazem seus interesses. Mais uma vez se prevê que a revisão contratual será excepcional e limitada, tentando-se coibir a interferência externa daquilo que foi negociado e definido entre as partes contratantes.

A doutrina tratava com muita cautela desse assunto, pois o ativismo judicial crescente das últimas décadas ameaça a previsibilidade e segurança jurídica dos empreendedores e por isso a lei tenta consolidar uma menor atuação sobre os negócios privados.


3. Alterações previstas no Projeto n.4 de 2025


O Projeto de reforma do Código Civil prevê algumas modificações nos artigos 421 e seguintes, sem alterar os padrões de interpretação previstos no artigo 113 já mencionado. 

Vejamos o que o projeto dispõe:

 Art. 421.

............................................................

§ 1° Nos contratos civis e empresariais, paritários, prevalecem o princípio da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual.

§ 2° A cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito.”


Art. 421-A. As regras deste Título a respeito dos contratos, não afastam o disposto em leis especiais e consideram as funções desempenhadas pelos tipos contratuais, cada um com suas peculiaridades.”

Art. 421-B. Deve-se levar em conta para o tratamento legal e para a identificação das funções realizadas pelos diversos tipos contratuais, a circunstância de disponibilizarem:

I - bens e serviços ligados à atividade de produção e de intermediação das cadeias produtivas, típicos dos contratos celebrados entre empresas;

II - bens e serviços terminais das cadeias produtivas ao consumidor final, marca dos contratos de consumo;

III - força de trabalho a uma cadeia produtiva, característica dos contratos de trabalho;

IV - bens e serviços independentemente de sua integração a qualquer cadeia produtiva, como se dá com os contratos civis.”

Art. 421-C. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos, se não houver elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção, e assim interpretam-se pelas regras deste Código, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais.

§ 1º Para sua interpretação, os contratos empresariais exigem os seguintes parâmetros adicionais de consideração e análise:

I - os tipos contratuais que são naturalmente díspares ou assimétricos, próprios de algumas relações empresariais, devem receber o tratamento específico que consta de leis especiais, assim como os contratos que decorram da incidência e da funcionalidade de cláusulas gerais próprias de suas modalidades;

II - a boa-fé empresarial mede-se, também, pela expectativa comum que os agentes do setor econômico de atividade dos contratantes têm, quanto à natureza do negócio celebrado e quanto ao comportamento leal esperado de cada parte;

III - na falta de redação específica de cláusulas necessárias à execução do contrato, o juiz valer-se-á dos usos e dos costumes do lugar de sua celebração e do modo comum adotado pelos empresários para a celebração e para a execução daquele específico tipo contratual;

IV - são lícitas em geral as cláusulas de não concorrência pós-contratual, desde que não violem a ordem econômica e sejam coerentemente limitadas no espaço e no tempo, por razoáveis e fundadas cláusulas contratuais;

V - a atipicidade natural dos contratos empresariais;

VI – o sigilo empresarial deve ser preservado.

§ 2º Nos contratos empresariais, quando houver flagrante disparidade econômica entre as partes, não se aplicará o disposto neste artigo.”

Art. 421-D. Salvo nos contratos de adesão ou por cláusulas predispostas em formulários, as partes podem, para a garantia da paridade contratual, sem prejuízo dos princípios e das normas de ordem pública, prever, fixar e dispor a respeito de:

I - parâmetros objetivos para a interpretação e para a revisão de cláusulas negociais;

II - hipóteses e pressupostos para a revisão ou resolução contratual;

III– alocação de riscos e seus critérios, definida pelas partes, que deve ser observada e respeitada;

IV - glossário com o significado de termos e de expressões utilizados pelas partes na redação do contrato;

V – interpretação de texto normativo.”

Art. 421-E. Devem ser interpretados, a partir do exame conjunto de suas cláusulas contratuais, de forma a privilegiar a finalidade negocial que lhes é comum, os contratos:

I - coligados;

II - firmados com unidade de interesses;

III - celebrados pelas partes de forma a torná-los estrutural e funcionalmente reunidos;

IV - cujos efeitos pretendidos pelas partes dependam da celebração de mais de um tipo contratual;

V - que se voltem ao fomento de vários negócios comuns às mesmas partes.”

Art. 421-F. Aos contratos empresariais aplicam-se os princípios que estão na descritos no art. 966-A deste Código, no que couber.”


Vê-se que uma série de regramentos busca conferir mais parâmetros à prática contratual brasileira. 
O artigo 421   passa a ter dois parágrafos, inserindo-se nova causa de nulidade de cláusula: a violação da função social do contrato, que pode ser vista com preocupação por aqueles que temem muitas interferências do Poder Judiciário sobre os termos contratuais. Ou seja, ao mesmo tempo em que o artigo consagra a mínima interferência e autonomia contatual, estabelece a nulidade de cláusula que viola a função social do contrato, tipo de regra aberta que permite ingerências consideradas indevidas por parte da doutrina mercantilista, por gerar insegurança jurídica.

O artigo 421-A também está com sua redação alterada no projeto de reforma, tendo sido abreviado e suas disposições dispersas em outros dispositivos acrescentados. Passaria a dispor somente sobre a observância das regras especiais aplicáveis a cada tipo de contrato e suas funções, estabelecidas no art.421-B, tentando definir contratos empresariais,  de consumo, de trabalho e civis.

Já o art.421-C traz a regra de que se presumem paritários todos os contratos civis e empresariais, consoante dispunha o artigo 421-A em sua redação atual dada pela Lei de Liberdade Econômica., dispondo sobre boa-fé empresarial, os modos admitidos de integração de cláusulas pelo juiz que tiver de fazer cumprir as obrigações estabelecidas, a licitude de cláusulas de não concorrência pós contratuais (muito debatidas na doutrina e jurisprudência, mas já aceitas há um bom tempo nos tribunais), a consagração do sigilo das transações empresariais. 

Por sua vez, o art. 421-D trata de parâmetros de interpretação, hipóteses de revisão e resolução do contrato, que podem ser estabelecidos, desde que os contratos não sejam de adesão ou feitos por formulários. Também poderão ser dispostos, desde que os contratos sejam paritários, a alocação de riscos, glossário de termos usados,  bem como interpretação de texto normativo a ser seguida pelos contratantes. 

Consta regra específica de interpretação que privilegie a finalidade negocial dos contratos coligados e celebrados em conjunto em relações jurídicas interdependentes, conforme dispõe o art.421-E projetado.

Por fim, o art.421-F dispõe que os princípios previstos no art. 966-A são aplicáveis aos contratos empresariais, ou seja, faz referência a novo dispositivo a ser introduzido no Código Civil, contendo a seguinte redação:

Art. 966-A. As disposições deste Livro devem ser interpretadas e aplicadas visando ao estímulo do empreendedorismo e ao incremento de um ambiente favorável ao desenvolvimento dos negócios no país, observados os seguintes princípios:
I- da liberdade de iniciativa e da valorização e aperfeiçoamento do capital humano;
II- da liberdade de organização e livre concorrência, da atividade empresarial, nos termos da lei;
III- da autonomia privada, que somente será afastada se houver violação de normas legais de ordem pública;
IV- da autonomia patrimonial, das pessoas jurídicas, conforme seu tipo societário;
V- da limitação da responsabilidade dos sócios, conforme o tipo societário adotado, nos termos legais;
VI- da deliberação majoritária do capital social, salvo se o contrário for previsto no contrato social;
VII- da força obrigatória das convenções, desde que não violem normas de ordem pública;
VIII- da preservação da empresa, de sua função social e de estímulo à atividade econômica;
IX- da observância dos usos, práticas e costumes quando a lei e os interessados se refiram a eles ou em situações não reguladas legalmente, sempre que não sejam contrários ao direito;
X- da simplicidade e instrumentalidade das formas.”

4. Conclusão

 Essas renovações legislativas, na esteira da promulgação da Lei de Liberdade Econômica, têm o objetivo de garantir maior segurança jurídica, maior previsibilidade negocial e também permitir maior investimentos, o que só é possível num ambiente de respeito e fomento aos contratos.

Vê-se também uma preocupação de consolidar princípios caros ao direito empresarial, previstos na Constituição Federal, nas disposições da lei civil, como forma de firmar parâmetros mais sólidos a ser atendidos pelos juízes e árbitros que forem chamados a interpretar e executar as disposições contratuais. 

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