Crimes em licitação e contratos administrativos
Olá, prezado leitor. Nesse texto vamos apresentar brevemente os tipos penais relativos à nova lei de licitações que foram incluídos no Código Penal.
Dentro do título XI da Parte Especial do Código Penal, que trata dos Crimes contra a Administração Pública, foi inserido um capítulo II-B, específico para crimes ocorridos no âmbito das licitações e contratos administrativos. Esse capítulo contém 12 tipos penais, com penas que variam entre 6 meses a 8 anos de reclusão.
Percebe-se que os tipos possuem descrição breve e verbos genéricos, possibilitando a punição de diversas condutas que se encaixem nas definições típicas. Além disso, percebe-se uma postura que lembra as disposições da lei de improbidade, que pune condutas comissivas mas também omissivas/negligentes dos gestores públicos. Daí verbos como “admitir”, “possibilitar”, “dar causa”, além das condutas comissivas como “frustrar”, “fraudar”, “devassar”, “impedir”.
Vamos a alguns comentários breves sobre o que se destaca.
O crime de contratação direta ilegal, trazido pelo artigo 337-E, pune aquele que permite que se realize tal contratação contrariamente à disposição legal, como se constata abaixo:
Contratação direta ilegal
Art. 337-E. Admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
Ora, a lei de licitações traz as situações em que ela é possível. Observe-se o que dispõe os artigos 72 a 75 da Lei de Licitações, mas adianta-se que as hipóteses são aquelas abrangidas pela condição de inexigibilidade e dispensa de licitação, cujo rol é extenso e não precisa ser indicado nessa postagem.
O legislador optou por não punir criminalmente o gestor público que desrespeita os requisitos exigidos para a contratação direta, conduta objeto de sanção administrativa e civil, mas apenas quem autoriza a contratação em casos nos quais ela não é aceita pelo ordenamento.
A pena também é das mais pesadas do novo capítulo, prevendo reclusão de 4 a 8 anos e multa.
Já o artigo 337-F trata da frustração do caráter competitivo da licitação:
Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter para si ou para outrem vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Passando para o artigo 337-G, tem-se um tipo penal que se aproxima de outros já antigos do Código, mas cuja redação é curiosa. Vejamos o que dele consta:
Patrocínio de contratação indevida
Art. 337-G. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração Pública, dando causa à instauração de licitação ou à celebração de contrato cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa.
O tipo penal fala em “patrocinar”, remetendo aos tipos penais comuns de advocacia administrativa, previsto no art. 321, ligados geralmente a intermediários de negociações irregulares entre agentes públicos e particulares interessados em alguma decisão que lhes seja favorável. Todavia, o tipo penal relativo à advocacia administrativa diz respeito ao funcionário público que se aproveita do cargo para intermediar a negociação de interesses privados, enquanto esse tipo penal não especifica tal situação, podendo ser qualquer pessoa.
E é curioso notar que a responsabilidade penal existirá quando a licitação ou contrato administrativo for invalidado pelo Poder Judiciário: ou seja, quando houver ilegalidade reconhecida pelo Poder Judiciário, o responsável por intermediar o interesse privado junto aos agentes públicos terá de acertar as contas com a Justiça.
Parece uma redação infeliz para uma situação que merece mesmo atenção e criminalização. Quando houver alguma ilegalidade ensejadora de processo licitatório ou de celebração de contrato administrativo (talvez até mesmo sem licitação, como no caso da contratação direta) e estes forem invalidados, o responsável por concertar os interesses dos agentes públicos e dos particulares beneficiados responderá por seus atos. Talvez a intenção fosse ser um tipo penal subsidiário à criminalização da contratação direta indevida e à frustração da competitividade da licitação, mas parece ser uma redação mal feita, que exclui a invalidade percebida pelo próprio ente administrativo, além de não estipular qual o tipo de ilegalidade pode ensejar a responsabilização criminal (hipóteses vedadas pela lei de licitação, requisitos formais imprescindíveis para a apresentação ou julgamento das propostas, requisitos para a celebração dos contratos administrativos com os vencedores do processo licitatório, enfim, vários aspectos podem ser passíveis de invalidade da licitação, e talvez não seja razoável criminalizar todos).
Voltando para a lista de tipos penais do novo capítulo sobre a licitação e contratos administrativos, há que se comentar sobre o crime de violação de sigilo em licitação, cuja transcrição segue:
O artigo 337-H dispõe sobre o crime de modificação de contrato ou pagamento irregular:
Art. 337-H. Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do contratado, durante a execução dos contratos celebrados com a Administração Pública, sem autorização em lei, no edital da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Já o artigo 337-I tipifica o crime de perturbação de processo licitatório:
Art. 337-I. Impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de processo licitatório: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Violação de sigilo em licitação
Art. 337-J. Devassar o sigilo de proposta apresentada em processo licitatório ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena - detenção, de 2 (dois) anos a 3 (três) anos, e multa.
Percebe-se a proximidade da redação com aquela do artigo 326 do mesmo Código, que abaixo trazemos:
Violação do sigilo de proposta de concorrência
Art. 326 - Devassar o sigilo de proposta de concorrência pública, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena - Detenção, de três meses a um ano, e multa.
Talvez o legislador tenha esquecido de revogar o dispositivo, pois surge um problema doutrinário para distinguir o que seja “concorrência pública” e o que seja “processo licitatório”, pois a razão de ser de ambos é coibir a mesma prática: punir que sem se vale da violação dos segredo envolvido na competição para burlar a competitividade. Outro problema será a da discrepância das penas aplicáveis, restando o artigo 326 como uma espécie de crime subsidiário, talvez em casos de procedimentos auxiliares à licitação.
Situação semelhante acontece com o delito do artigo 337-K, que trata do afastamento de licitante:
Afastamento de licitante
Art. 337-K. Afastar ou tentar afastar licitante por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo:
Pena - reclusão, de 3 (três) anos a 5 (cinco) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem se abstém ou desiste de licitar em razão de vantagem oferecida.
A redação do dispositivo é muita próxima da redação do art.335:
Impedimento, perturbação ou fraude de concorrência
Art. 335 - Impedir, perturbar ou fraudar concorrência pública ou venda em hasta pública, promovida pela administração federal, estadual ou municipal, ou por entidade paraestatal; afastar ou procurar afastar concorrente ou licitante, por meio de violência, grave ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Incorre na mesma pena quem se abstém de concorrer ou licitar, em razão da vantagem oferecida.
Ambos os dispositivo falam de situações em que há o afastamento forçado de concorrentes, seja por violência, ameaça, fraude ou oferecimento de vantagem, mas a pena é bem diferente: no crime licitatório, a reclusão é de 3 de a 5 anos, enquanto no crime já constante do Código Penal, a pena vai de 6 meses a 2 anos, e pode ser substituída por multa.
O legislador optou, mais uma vez, por manter os dois crimes no mesmo Código, e a doutrina terá de acomodar qual é a diferença entre processo licitatório e “concorrência” pública. Talvez cheguemos em situação absurda em que o crime praticado na modalidade licitatória de “concorrência”, que envolve valores e riscos maiores à Administração Pública, seja apenado de maneira mais branda pela previsão expressa no Código a ele relativa. Esperemos uma exegese doutrinária e judicial compatível com o combate à corrupção e não o inverso!
Por sua vez, o art. 337-L traz diversas maneiras pelas quais um contrato administrativo pode ser mal executado. Vejamos:
Fraude em licitação ou contrato
Art. 337-L. Fraudar, em prejuízo da Administração Pública, licitação ou contrato dela decorrente, mediante:
I - entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas no edital ou nos instrumentos contratuais;
II - fornecimento, como verdadeira ou perfeita, de mercadoria falsificada, deteriorada, inservível para consumo ou com prazo de validade vencido;
III - entrega de uma mercadoria por outra;
IV - alteração da substância, qualidade ou quantidade da mercadoria ou do serviço fornecido;
V - qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração Pública a proposta ou a execução do contrato:
Pena - reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.
Parece que a redação da epígrafe do tipo penal foi infeliz, pois essas situações não são “fraudulentas”, apenas inexecução do que foi contratado, ludibriando a Administração Pública naquilo que foi adjudicado ao particular para que prestasse. A “fraude” propriamente dita consta do inciso V, que onera o ente administrativo indevidamente durante a execução do contrato, exigindo maior desembolso ou causando atrasos e desabastecimento à Administração Pública.
O artigo 337-M estabelece como crime a admissão de profissional ou empresa declarado inidoneo para uma licitação, prevendo crimes qualificados quando há celebração de contratos.
Art. 337-M. Admitir à licitação empresa ou profissional declarado inidôneo: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - reclusão, de 1 (um) ano a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
§ 1º Celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - reclusão, de 3 (três) anos a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
§ 2º Incide na mesma pena do caput deste artigo aquele que, declarado inidôneo, venha a participar de licitação e, na mesma pena do § 1º deste artigo, aquele que, declarado inidôneo, venha a contratar com a Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
De outro lado, também constitui crime as ações que impeçam interessados de maneira injustificada de se inscrever em registros cadastrais ou que até mesmo alterem, suspendam ou cancleem seu registro:
Art. 337-N. Obstar, impedir ou dificultar injustamente a inscrição de qualquer interessado nos registros cadastrais ou promover indevidamente a alteração, a suspensão ou o cancelamento de registro do inscrito: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
O artigo 338-O tipifica o crime próprio do responsável por projeto que o faça de maneira a omitir informações que prejudiquem o julgamento de propostas dos participantes:
Omissão grave de dado ou de informação por projetista (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Art. 337-O. Omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse: (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
§ 1º Consideram-se condição de contorno as informações e os levantamentos suficientes e necessários para a definição da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante, incluídos sondagens, topografia, estudos de demanda, condições ambientais e demais elementos ambientais impactantes, considerados requisitos mínimos ou obrigatórios em normas técnicas que orientam a elaboração de projetos. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
§ 2º Se o crime é praticado com o fim de obter benefício, direto ou indireto, próprio ou de outrem, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 14.133, de 2021)
Voltando a lista de artigos inseridos no Código Penal, pode-se apontar um parâmetro de dosimetria da pena de multa aplicável aos crimes contra a licitação ou contrato administrativo: o valor da multa não poderá ser inferior a 2% do valor do contrato. Observe-se a disposição:
Art. 337-P. A pena de multa cominada aos crimes previstos neste Capítulo seguirá a metodologia de cálculo prevista neste Código e não poderá ser inferior a 2% (dois por cento) do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta.
Essa previsão busca cobrir tanto os contratos que resultaram de um processo licitatório comprometido por condutas irregulares quanto os contratos realizados diretamente por causa dessas irregularidades cometidas.
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Confira o texto da lei de licitações:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm
Confira o texto do Código Penal:




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