A desconsideração da personalidade jurídica e o Projeto de Reforma do Código Civil
O Código Civil foi publicado em 2002 e sua vigência teve início em 2003, de modo que todos pudessem conhecer e fazer as adequações necessárias naquilo que fosse preciso, tanto no que dispõe em relação às pessoas quanto às empresas.
No entanto, algumas disposições sofreram mudanças mais recentes, permitindo a fruição e salvaguarda de direitos previstos na Constituição Federal.
Neste texto, vamos comentar um pouco sobre a desconsideração da personalidade jurídica das empresas, tema que tem ganhado relevância no cenário empresarial e trabalhista nos últimos anos.
1. Sobre a Desconsideração da Personalidade Jurídica
A desconsideração da Personalidade Jurídica, ou DPJ, é um instituto que permite a responsabilização patrimonial de pessoas físicas pelas dívidas e obrigações não pagas pela pessoa jurídica a que estão ligadas.
Ou seja, é um instrumento que previne que determinadas fraudes e golpes permaneçam impunes, permitindo-se que a Justiça alcance bens de pessoas físicas para honrar dívidas contraídas por elas mas com a proteção ou “fachada” de uma pessoa jurídica.
A previsão legal era enxuta e dispunha o seguinte:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
O texto evitava conceituações, o que acarretou o alargamento e o estreitamento das hipóteses legais contidas no artigo 50. Dessa forma, determinados entendimentos tentavam expandir os limites do que seria o “abuso da personalidade jurídica”, enquanto outros tentavam restringi-los.
Assim, a Justiça Trabalhista tendia a uma interpretação mais abrangente, muitas vezes decidindo a favor da apreensão de bens e bloqueio de contas de sócios das empresas que mantinham obrigações trabalhistas não pagas, enquanto a Justiça Cível tendia a uma interpretação mais conservadora.
Após muitos debates, mudanças promovidas em 2019 renovaram o presente artigo, de modo a restringir tais caracterizações, pela conceituação de tais institutos. Veja-se a nova redação:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Desse modo, restringe-se a responsabilização patrimonial de pessoas físicas por dívidas contraídas em nome da empresa apenas aos sócios que forem diretamente ou indiretamente beneficiados por tais dívidas, protegendo sócios minoritários e pessoas distantes da administração da empresa, que poderiam ser prejudicadas nessas situações sem culpa alguma.
Também se caracteriza o desvio de finalidade e a confusão patrimonial, o primeiro sendo o objetivo de lesar credores ou praticar ilícito usando-se o “nome” da empresa e a segunda sendo a prática de pagamentos e transferências de bens e valores para pagar dívidas ou cumprir obrigações desrespeitando a autonomia patrimonial que deve existir entre o sócio e a empresa (ex. sócio usa caixa da empresa para pagar mensalidade escolar, plano de saúde individual, etc.)
A lei inovou também ao prever aquilo que a jurisprudência já vinha admitindo na prática, a denominada “desconsideração inversa”, prevista no parágrafo 3º: a situação de que a empresa assume dívidas em nome dos sócios, de modo a onerar o patrimônio pessoal dos mesmos, muitas vezes insuficiente para a quitação de tais obrigações. Desse modo, a Justiça pode bloquear e apreender bens da empresa para quitar tais dívidas, de maneira inversa ao que seria na DPJ tradicional.
Os parágrafos 4º e 5º tratam de restrições que eram reclamadas a tempo na seara empresarial.
Em diversas decisões, a Justiça do Trabalho, ao constatar que uma empresa que tinha passivos trabalhistas fazia parte de um grupo econômico, determinava a apreensão de bens e bloqueio de valores de outras empresas do grupo para quitar tais obrigações.
Isso se justificava na medida em que empresas de um mesmo grupo econômico podem distribuir lucros e repartir prejuízos em conjunto.
Todavia, a lei civil não mais permite tal prática, a não ser que seja constatado o abuso de personalidade, ou seja, atos lesivos a credores trabalhistas ou a confusão patrimonial entre as empresas do grupo econômico.
Já o parágrafo 5º estabelece que a alteração do objetivo empresarial não constitui desvio de finalidade passível de autorizar a DPJ, diminuindo os riscos da atividade empresarial que se desenvolve em outras direções não planejadas inicialmente pelos sócios.
2. O que dispõe o Projeto de Lei n.4 de 2025
O Projeto de lei de Reforma do Código Civil estabelece algumas modificações no art.50. Vejamos:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens de propriedade de administradores, sócios ou associados da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º O disposto neste artigo se aplica a todas as pessoas jurídicas de direito privado, nacionais ou estrangeiras, com atividade civil ou empresária, mesmo que prestadoras de serviço público.
§ 2º Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica de associações, a responsabilidade patrimonial será limitada aos associados com poder de direção ou com poder capaz de influenciar a tomada da decisão que configurou o abuso da personalidade jurídica.
§ 3º É cabível a desconsideração da personalidade jurídica inversa, para alcançar bens de sócio, administrador ou associado que se valeram da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.
§ 4º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores ou para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, inclusive a de abuso de direito.
§ 5º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação dos patrimônios, caracterizada:
I - pela prática pelos sócios ou administradores de atos reservados à sociedade, ou pela prática de atos reservados aos sócios ou administradores pela sociedade;
II - pelo cumprimento repetitivo pela pessoa jurídica de obrigações do sócio, associados ou administradores, ou vice-versa;
III - pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e
IV - por outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
§ 6º Aos sócios e aos administradores da pessoa jurídica também se aplicam o que dispõem o caput e os §§ 1º e 2º deste artigo.
§ 7º A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não justifica a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
§ 8º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.”
Percebe-se aqui que se abandona uma descrição legal de "desvio de finalidade", e passa-se apenas a trazer hipóteses mais detalhadas da confusão patrimonial.
A redação do projeto traz regra interessante que amplia a abrangência de cabimento da DPJ para associações, bem como estabelece que ela pode atingir empresas e sócios estrangeiros também. Dispõe sobre salvaguarda importante àqueles que participam da sociedade sem poder de decisão, devendo ficar protegidos de eventuais medidas constritivas de patrimônio decorrentes da DPJ.
O projeto também faz referência expressa à DPJ inversa, criação jurisprudencial para corrigir artificialismos que dificultavam o atingimento do patrimônio de devedores contumazes.
3. Conclusão
Trata-se de instituto fundamental para que a segurança jurídica, tão necessária ao meio negocial, seja conservada e ampliada, de modo a coibir fraudes, garantindo o cumprimento das obrigações ou, ao menos, o ressarcimento devido.
As novas balizas trazidas no texto do projeto parecem avançar no sentido de conferir mais certeza na aplicação do instituto a DPJ. Resta saber quais serão as modificações que os debates no Congresso provocarão na redação atual do projeto.
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